29.12.11

Acarajé


Do acarajé ao biodiesel



Todo mundo sabe o que é acarajé, acho. A delícia é consumida hoje, na Bahia, cotidianamente, como lanche, concorrendo vitoriosamente com os sanduíches do McDonald's.

Vendido em inúmeros tabuleiros espalhados pela Cidade da Bahia, o acarajé (e sua versão cozida, o abará) emprega hoje centenas de pessoas na capital baiana. Emprega, aliás, mais do que fábrica da Ford e o Shopping Center Iguatemi. Cerca de quatro mil pessoas, se não me falha a memória. E há mesmo tabuleiros que, mais que micro, são pequenas e até médias empresas.
Neste aspecto de consumo comercial, profano, o acarajé pode ser visto, como quer um conhecido publicitário local, como uma espécie de "fast food" baiana. Em outro aspecto, porém, o acarajé, mais que "fast", é "feast food" (seu preparo tradicional, aliás, não tem nada de "fast", muito pelo contrário). Comida ritual, vinculada ao culto de Oiá-Iansã, a deusa do corpo perfeito.
A palavra é iorubana, como se sabe. Uma palavra-montagem, que o iorubá (vocábulo que nossos dicionários e programas de computador insistem em "corrigir", cortando erroneamente o acento agudo), assim como o tupi e o alemão, é uma língua aglutinante.
Montagem de akará (bolo, digamos) e jé (pronuncia-se "djé"), verbo, 'comer' - que, aliás, aparece em belo verso de um oriki de Oiá-Iansã, numa definição direta (precisa e concisa) da deusa fulgurante, guerreira do corpo de fogo, labareda erótica: "Ekun ti njé ewe atá". Vale dizer: "leopardo que come pimenta crua".
Mas o que mais importa aqui, nessa conviceversa, é que não se faz acarajé sem dendê. Sem o óleo vermelho-dourado que se extrai dos dendezeiros.
Na verdade, a chamada "comida baiana" não existiria sem dendê. Do abará à moqueca de vermelho ou beijupirá (na verdade, faz-se moqueca de quase tudo, até de ovo e mamão verde), passando pelo xinxim de galinha. Baiano não passa sem dendê, assim como parte de Minas e Goiás não dispensam o pequi.
Na literatura, na poesia, no cinema, na fotografia baianas, volta e meia topamos com o dendê. Na música, também, é claro. Vide Moraes Moreira, cantando "mancha de dendê não sai".
Bem. Em 1973, a economia mundial foi obrigada a encarar o então chamado "choque do petróleo" (teríamos um outro adiante, em 1979, que faria Delfim Netto meter o pé no freio e conduzir o Brasil à recessão), no rastro da guerra do Yom Kippur, movida pelos árabes contra Israel. Choque que afetou seriamente o Brasil, país que, naquela época, importava cerca de 80% do combustível que consumia.
Mas a crise, como disse, foi mundial. O planeta pareceu subitamente consciente do que significava o fato de ter montado toda uma estrutura urbana, industrial e de comunicações - e todo um modo de vida, com cidades pensadas cada vez mais em função dos automóveis, por exemplo - sobre um combustível fóssil cujas grandes reservas não só se achavam geograficamente concentradas em determinados pontos do mundo, como eram finitas, "não-renováveis".
Surgiram, então, previsões apocalípticas. E análises densas e complexas da questão, como a que fez Geoffrey Barraclough, um dos historiadores mais brilhantes do século passado, autor do indispensável "Introdução à História Contemporânea".
Daí para cá, a procura de alternativas para o petróleo foi se tornando item cada vez mais presente na agenda econômica mundial. E o Brasil, país produtor de petróleo, moveu-se então com raro pioneirismo. Em vez de seguir o caminho aberto por outros, chegou ao programa do álcool, durante o governo do general Geisel. Passou a produzir etanol (vieram nas pegadas brasileiras, desta vez, embora produzindo pouquíssimo, os EUA e o Paraguai). E carros a álcool. Muitos.
Depois, as coisas foram abandonadas. A produção de carros movidos a álcool começou a cair no final da década de 1980, continuou despencando espetacularmente, até praticamente desaparecer em 2001. Os usineiros, àquela altura, já estavam transformando seus canaviais em açúcar, que dava dinheiro, que é o de que eles gostam mais.
Ao mesmo tempo, a busca de combustíveis alternativos não cessou. Pelo contrário. Revigorou-se. E até ganhou impulso forte e extra, mais recentemente, com a tecnologia "flex fuel", desenvolvida simultaneamente nos EUA, no Japão e na Europa - carros bicombustíveis, ou, como os baianos preferem dizer, bissexuais, com sensores que permitem ao motor saber se o que ele está bebendo é gasosa ou álcool.
E aí veio a onda da bioenergia, que agora se espalha pelo mundo. Pioneiro em etanol, o Brasil avançou para o biodiesel. E para chegar a uma inovação verdadeiramente revolucionária, graças a pesquisas da Petrobrás: o chamado Hbio, que deve ser misturado ao diesel.
Bem vistas as coisas, começa a acontecer, em escala planetária, uma revolução que vai transformar a estrutura agrícola do mundo. O Brasil é o país que mais tem a ganhar com isso, colocando-se na linha de frente, na ponta das transformações.
E acontece que o biodiesel pode ser extraído de coisas como a mamona, o girassol e o... dendê. O azeite dos baianos aponta, agora, para o futuro. Vai incrementar outras moquecas. A nossa moqueca "high-tech". Coisa de Exu? Deve ser. E - se for - laroiê!

O acarajé, o ori, o oriki

Publiquei aqui, semana passada, um texto em que me referi ao "preparo tradicional" do acarajé e citei uma linha de um oriki de Oiá-Iansã (leia aqui). Com isso, provoquei a curiosidade de uma amiga, que agora vou tentar satisfazer.
O acarajé nasce de uma transação francamente edipiana. Não estou brincando. O antropólogo Vivaldo da Costa Lima, autor de "A Família de Santo no Candomblé Jeje-Nagô", andou escrevendo sobre o assunto, em seus mais recentes estudos de antropologia da alimentação. Citando, a propósito, uma antiga parceria poético-musical minha e do Moraes Moreira, "Pessoal do Aló", que fez sucesso no carnaval da Bahia, tempos atrás.
Mas é o seguinte. Para fazer acarajé, você tem de deixar o feijão fradinho de molho, de um dia para o outro, de modo que a casca do dito cujo se desprenda. Em seguida, você precisa ralar o feijão. E faz isso com duas pedras. A pedra grande é chamada "ialó" (ou "iá-ló"); a pequena, "omoló", ou "omô-ló". Expressões iorubanas. "Iá" vem de "iyá" (que significa 'mãe'), "omô" é 'filho' e 'ló' é forma do verbo 'ralar' ou 'roçar'. Logo: "iá-ló" (a mãe-que-rala, a mãe-que-roça) e "omô-ló" (o filho-que-rala, o filho-que-roça). O feijão fradinho fica entre essas duas pedras. E é do ralar, do roçar, do roça-roça entre a pedra grande e a pequena, entre mãe e filho, portanto, que nasce a massa do acarajé, para só então ser endereçada à fritura no dendê.
Vêm do verbo "roçar", de "aló", de resto, expressões que designam o sexo entre mulheres, as atividades tríbades ou, como diria Guimarães Rosa, as delícias do lambarar lesbiano, no linguajar dos terreiros. Uma mulher que transa com mulheres é "do aló". Gosta de roçar, de "ralar coco". O sintagma "pessoal do aló" se refere, assim, à sapataria, que divertidamente homenageei na letra musicada por Moraes. São as moças do roçado, do rala-coco, do roça-roça. As moças, senhoras e meninas do aló: "alô, alô, pessoal do aló... quem é do roçado, ralando coco, se dá melhor".
O oriki, por sua vez, é uma forma, um gênero poético tradicional, milenar, do povo nagô-iorubá. Cada pessoa tem o seu. E tudo no mundo pode ter um: as guerras, os animais, as plantas, as cidades, etc., etc. O oriki é um "retrato", digamos assim, que expressa de modo concentrado os traços mais salientes do objeto que focaliza. Pode se resumir a uma única frase - ou pode se compor, também, pela justaposição direta, pela colagem "ideogrâmica" de muitas e muitas frases, em textos permutatórios (Karin Barber estudou esta "intertextualidade" nagô em seu excelente "I Could Speak Until Tomorrow"). Em sua forma mais concisa, podemos tratá-lo como um equivalente nagô do epíteto homérico. Assim como, no texto grego, Palas Atena é "a deusa dos olhos verde-mar" e Odisseu é "o artificioso", no oriki iorubano Oiá-Iansã é "a grande ventania" e Xangô é "akatá yeriyeri" - a fera faiscante.
A expressão "oriki" é uma montagem verbal: ori + iki. "Ori" significa "cabeça", mas num sentido muito especial. É uma "cabeça" que está dentro de nós, uma "inner head". Em sentido profundo, "ori" é o primeiro deus, o destino de cada pessoa. Antes de nascer, cada um de nós escolhe, ainda no "orum" (no além, num mundo extraterrestre), o seu ori - a sua "inner head", o seu destino, que deverá cumprir ao longo de sua existência. Já "iki" é o verbo "saudar". A expressão "oriki" pode ser traduzida, assim, por "saudação à cabeça", "saudação ao destino de".
Temos aí, portanto, de alguma forma, uma teoria da predestinação. Mas esta teoria, no caso do pensamento tradicional iorubano, nada tem de simplista. É sutil, sofisticada. Escolho o meu ori (destino) no orum. Mas, quando ocorre o meu nascimento aqui na Terra (no "aiyê"), já não sei qual o ori-destino que escolhi cumprir. Assim, o meu deus primeiro é o meu destino, que devo cumprir, embora não saiba que destino é esse.
Para isso, para clarear o caminho, para me aproximar do meu ori e da realização do meu destino, é que devo consultar Ifá, Orumilá-Ifá, o Grande Adivinho, capaz de decodificar mensagens formuladas em todas as línguas do mundo. É através dos signos transmitidos por Ifá, pelo jogo de búzios, que posso ir progressivamente me sintonizando com o meu ori. De modo que seja possível a realização plena do meu destino aqui no aiyê.


Por Antonio Risério, poeta e antropólogo


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