Do acarajé ao biodiesel
Todo mundo sabe o que é acarajé, acho. A delícia é
consumida hoje, na Bahia, cotidianamente, como lanche, concorrendo
vitoriosamente com os sanduíches do McDonald's.
Vendido em inúmeros tabuleiros espalhados pela Cidade
da Bahia, o acarajé (e sua versão cozida, o abará) emprega hoje centenas de
pessoas na capital baiana. Emprega, aliás, mais do que fábrica da Ford e o
Shopping Center Iguatemi. Cerca de quatro mil pessoas, se não me falha a
memória. E há mesmo tabuleiros que, mais que micro, são pequenas e até médias
empresas.
Neste aspecto de consumo comercial, profano, o acarajé
pode ser visto, como quer um conhecido publicitário local, como uma espécie de
"fast food" baiana. Em outro aspecto, porém, o acarajé, mais que
"fast", é "feast food" (seu preparo tradicional, aliás, não
tem nada de "fast", muito pelo contrário). Comida ritual, vinculada
ao culto de Oiá-Iansã, a deusa do corpo perfeito.
A palavra é iorubana, como se sabe. Uma
palavra-montagem, que o iorubá (vocábulo que nossos dicionários e programas de
computador insistem em "corrigir", cortando erroneamente o acento
agudo), assim como o tupi e o alemão, é uma língua aglutinante.
Montagem de akará (bolo, digamos) e jé (pronuncia-se
"djé"), verbo, 'comer' - que, aliás, aparece em belo verso de um
oriki de Oiá-Iansã, numa definição direta (precisa e concisa) da deusa
fulgurante, guerreira do corpo de fogo, labareda erótica: "Ekun ti njé ewe
atá". Vale dizer: "leopardo que come pimenta crua".
Mas o que mais importa aqui, nessa conviceversa, é que
não se faz acarajé sem dendê. Sem o óleo vermelho-dourado que se extrai dos
dendezeiros.
Na verdade, a chamada "comida baiana" não
existiria sem dendê. Do abará à moqueca de vermelho ou beijupirá (na verdade,
faz-se moqueca de quase tudo, até de ovo e mamão verde), passando pelo xinxim
de galinha. Baiano não passa sem dendê, assim como parte de Minas e Goiás não
dispensam o pequi.
Na literatura, na poesia, no cinema, na fotografia
baianas, volta e meia topamos com o dendê. Na música, também, é claro. Vide
Moraes Moreira, cantando "mancha de dendê não sai".
Bem. Em 1973, a economia mundial foi obrigada a
encarar o então chamado "choque do petróleo" (teríamos um outro
adiante, em 1979, que faria Delfim Netto meter o pé no freio e conduzir o
Brasil à recessão), no rastro da guerra do Yom Kippur, movida pelos árabes
contra Israel. Choque que afetou seriamente o Brasil, país que, naquela época,
importava cerca de 80% do combustível que consumia.
Mas a crise, como disse, foi mundial. O planeta pareceu
subitamente consciente do que significava o fato de ter montado toda uma
estrutura urbana, industrial e de comunicações - e todo um modo de vida, com
cidades pensadas cada vez mais em função dos automóveis, por exemplo - sobre um
combustível fóssil cujas grandes reservas não só se achavam geograficamente
concentradas em determinados pontos do mundo, como eram finitas,
"não-renováveis".
Surgiram, então, previsões apocalípticas. E análises
densas e complexas da questão, como a que fez Geoffrey Barraclough, um dos
historiadores mais brilhantes do século passado, autor do indispensável
"Introdução à História Contemporânea".
Daí para cá, a procura de alternativas para o petróleo
foi se tornando item cada vez mais presente na agenda econômica mundial. E o Brasil,
país produtor de petróleo, moveu-se então com raro pioneirismo. Em vez de
seguir o caminho aberto por outros, chegou ao programa do álcool, durante o
governo do general Geisel. Passou a produzir etanol (vieram nas pegadas
brasileiras, desta vez, embora produzindo pouquíssimo, os EUA e o Paraguai). E
carros a álcool. Muitos.
Depois, as coisas foram abandonadas. A produção de
carros movidos a álcool começou a cair no final da década de 1980, continuou
despencando espetacularmente, até praticamente desaparecer em 2001. Os
usineiros, àquela altura, já estavam transformando seus canaviais em açúcar,
que dava dinheiro, que é o de que eles gostam mais.
Ao mesmo tempo, a busca de combustíveis alternativos
não cessou. Pelo contrário. Revigorou-se. E até ganhou impulso forte e extra,
mais recentemente, com a tecnologia "flex fuel", desenvolvida
simultaneamente nos EUA, no Japão e na Europa - carros bicombustíveis, ou, como
os baianos preferem dizer, bissexuais, com sensores que permitem ao motor saber
se o que ele está bebendo é gasosa ou álcool.
E aí veio a onda da bioenergia, que agora se espalha
pelo mundo. Pioneiro em etanol, o Brasil avançou para o biodiesel. E para
chegar a uma inovação verdadeiramente revolucionária, graças a pesquisas da
Petrobrás: o chamado Hbio, que deve ser misturado ao diesel.
Bem vistas as coisas, começa a acontecer, em escala
planetária, uma revolução que vai transformar a estrutura agrícola do mundo. O
Brasil é o país que mais tem a ganhar com isso, colocando-se na linha de
frente, na ponta das transformações.
E acontece que o biodiesel pode ser extraído de coisas
como a mamona, o girassol e o... dendê. O azeite dos baianos aponta, agora,
para o futuro. Vai incrementar outras moquecas. A nossa moqueca
"high-tech". Coisa de Exu? Deve ser. E - se for - laroiê!
O acarajé, o ori, o oriki
Publiquei aqui, semana passada, um texto em que me
referi ao "preparo tradicional" do acarajé e citei uma linha de um
oriki de Oiá-Iansã (leia aqui).
Com isso, provoquei a curiosidade de uma amiga, que agora vou tentar
satisfazer.
O acarajé nasce de uma transação francamente edipiana.
Não estou brincando. O antropólogo Vivaldo da Costa Lima, autor de "A
Família de Santo no Candomblé Jeje-Nagô", andou escrevendo sobre o
assunto, em seus mais recentes estudos de antropologia da alimentação. Citando,
a propósito, uma antiga parceria poético-musical minha e do Moraes Moreira,
"Pessoal do Aló", que fez sucesso no carnaval da Bahia, tempos atrás.
Mas é o seguinte. Para fazer acarajé, você tem de
deixar o feijão fradinho de molho, de um dia para o outro, de modo que a casca
do dito cujo se desprenda. Em seguida, você precisa ralar o feijão. E faz isso
com duas pedras. A pedra grande é chamada "ialó" (ou
"iá-ló"); a pequena, "omoló", ou "omô-ló".
Expressões iorubanas. "Iá" vem de "iyá" (que significa
'mãe'), "omô" é 'filho' e 'ló' é forma do verbo 'ralar' ou 'roçar'.
Logo: "iá-ló" (a mãe-que-rala, a mãe-que-roça) e "omô-ló"
(o filho-que-rala, o filho-que-roça). O feijão fradinho fica entre essas duas
pedras. E é do ralar, do roçar, do roça-roça entre a pedra grande e a pequena,
entre mãe e filho, portanto, que nasce a massa do acarajé, para só então ser
endereçada à fritura no dendê.
Vêm do verbo "roçar", de "aló", de
resto, expressões que designam o sexo entre mulheres, as atividades tríbades
ou, como diria Guimarães Rosa, as delícias do lambarar lesbiano, no linguajar
dos terreiros. Uma mulher que transa com mulheres é "do aló". Gosta
de roçar, de "ralar coco". O sintagma "pessoal do aló" se
refere, assim, à sapataria, que divertidamente homenageei na letra musicada por
Moraes. São as moças do roçado, do rala-coco, do roça-roça. As moças, senhoras
e meninas do aló: "alô, alô, pessoal do aló... quem é do roçado, ralando
coco, se dá melhor".
O oriki, por sua vez, é uma forma, um gênero poético
tradicional, milenar, do povo nagô-iorubá. Cada pessoa tem o seu. E tudo no
mundo pode ter um: as guerras, os animais, as plantas, as cidades, etc., etc. O
oriki é um "retrato", digamos assim, que expressa de modo concentrado
os traços mais salientes do objeto que focaliza. Pode se resumir a uma única
frase - ou pode se compor, também, pela justaposição direta, pela colagem
"ideogrâmica" de muitas e muitas frases, em textos permutatórios
(Karin Barber estudou esta "intertextualidade" nagô em seu excelente
"I Could Speak Until Tomorrow"). Em sua forma mais concisa, podemos
tratá-lo como um equivalente nagô do epíteto homérico. Assim como, no texto
grego, Palas Atena é "a deusa dos olhos verde-mar" e Odisseu é
"o artificioso", no oriki iorubano Oiá-Iansã é "a grande
ventania" e Xangô é "akatá yeriyeri" - a fera faiscante.
A expressão "oriki" é uma montagem verbal:
ori + iki. "Ori" significa "cabeça", mas num sentido muito
especial. É uma "cabeça" que está dentro de nós, uma "inner
head". Em sentido profundo, "ori" é o primeiro deus, o destino
de cada pessoa. Antes de nascer, cada um de nós escolhe, ainda no
"orum" (no além, num mundo extraterrestre), o seu ori - a sua
"inner head", o seu destino, que deverá cumprir ao longo de sua
existência. Já "iki" é o verbo "saudar". A expressão
"oriki" pode ser traduzida, assim, por "saudação à cabeça",
"saudação ao destino de".
Temos aí, portanto, de alguma forma, uma teoria da
predestinação. Mas esta teoria, no caso do pensamento tradicional iorubano,
nada tem de simplista. É sutil, sofisticada. Escolho o meu ori (destino) no
orum. Mas, quando ocorre o meu nascimento aqui na Terra (no "aiyê"),
já não sei qual o ori-destino que escolhi cumprir. Assim, o meu deus primeiro é
o meu destino, que devo cumprir, embora não saiba que destino é esse.
Para isso, para clarear o caminho, para me aproximar do meu ori e da
realização do meu destino, é que devo consultar Ifá, Orumilá-Ifá, o Grande
Adivinho, capaz de decodificar mensagens formuladas em todas as línguas do
mundo. É através dos signos transmitidos por Ifá, pelo jogo de búzios, que
posso ir progressivamente me sintonizando com o meu ori. De modo que seja
possível a realização plena do meu destino aqui no aiyê.
Por Antonio Risério, poeta e antropólogo
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